Capítulo 6 – O reencontro
As lembranças sempre me voltavam. Onde estaria agora o
Doutor Isávolo? E meu pai, ainda estaria vivo? Os pesadelos também não me
abandonavam: Alícia, minha mãe, meu pai e agora a moça do galpão. Quem era ela?
Tão bonita...Tão frágil...Tão brava. Há tanto tempo eu não conversava com
ninguém. Pensei que não houvesse mais grupos de resistência, ou melhor,
sobrevivência.
Parece que já está anoitecendo, o céu está mais escuro. Não
estou com sono. Vou sair um pouco.
Caminhei pelas ruas escuras e percebi que já não tinha medo
de nada. Não temia pela minha vida e também não havia ninguém que temesse por
mim. O que eu poderia perder? Uma solidão profunda aproximou-se de mim e, por
alguns segundos, senti que quase chorei, coisa que eu já não fazia há muito
tempo.
Neste momento eu estava passando ao lado de uma casa
abandonada e ouvi uma voz doce, falando baixinho. Com cuidado, aproximei-me de
uma janela e vi a moça do galpão.
Fiquei
durante um tempo observando aquela mulher frágil que lia uma história para duas
crianças: um menino e uma menina. Pendurado na janela, me senti também uma
criança e não percebi a aproximação de um grupo de homens que invadiram o
lugar, aos berros.
- Comida? Cadê a comida, miserável? Gritava um dos três
homens que invadiram o cômodo.
- Nós não temos comida, aqui. Eu juro.
- Mentirosa. Pegou a menina pelo cabelo e colocou uma faca
velha e enferrujada no pescoço da criança – Fale agora ou eu corto o pescoço da
pestinha aqui. Gritava o calhorda.
- Não! Gritou a moça.
Eu não podia mais esperar. Atirei no bandido que segurava a
menina e logo em seguida entrei pela janela e rendi facilmente os dois outros,
deixando-os desacordados enquanto Rebeca e as crianças se encolhiam no canto da
sala. Ainda assustada, ela disse:
- Obrigada, mas como sabia que estávamos aqui? E como luta
desta maneira? Você é um soldado da Fênix? Meu Deus, estamos perdidos. Começou
a chorar.
- Calma, Rebeca. Eu não sou da Fênix.
- Então, “o quê” você é? Tão forte, tão ágil. Nenhum homem
nasce assim. Diga-me.
- Eu direi, Rebeca, mas não agora. Precisamos sair daqui e
levar as crianças para um outro local mais seguro. Podem existir mais desses
homens. Vamos.
- Não posso sair daqui, os pais dessas crianças saíram em
busca de comida e eu fiquei tomando conta delas.
- Tudo bem, mas precisamos ao menos mudar de cômodo e nos
esconder. Vá com as crianças para a sala no final do corredor. Eu vou amarrar
esses caras, ok?
Ela seguiu minhas orientações e logo depois eu os encontrei
lá.
- Daqui poderemos escutar a chegada dos pais deles e também
verificar se outros daqueles canalhas estão chegando. Expliquei.
Ficamos em silêncio por algum tempo, iluminados apenas com
um fio de luz que vinha da pouca iluminação da rua e entrava por uma fresta da
janela. Sentei-me no chão, encostado na parede, de frente para Rebeca e as
crianças que agora dormiam com a cabeça em seu colo.
- Como é seu nome? Você já me conhece muito e eu não sei
nem o seu nome. Reclamou a moça.
- Sebastian. Não tenho uma vida muito interessante, mas vou
te contar o que você quer saber. Como eu disse, não sou da Fênix, mas fui. Ela
retesou o corpo contra a parede e o medo foi evidente. - Não tenha medo,
Rebeca. Tenho tanto ódio deles quanto você deve ter.
- O que aconteceu?
- Não gostaria de relembrar fatos dolorosos, mas o
importante é que você saiba que houve um momento em que eu não concordava mais
com as ações da Fênix e então fui descartado, mas antes disso eles tentaram me
transformar numa marinete, como fizeram com muitos outros soldados, mas não
conseguiram.
- Como assim?
- Eu sou um cyborg, Rebeca.
Ela se assustou visivelmente e parecia olhar para um
fantasma. Continuei.
- Um cyborg que não pode ser controlado, e isso não é
muito interessante para eles, você não acha?
- Mas os cyborgs têm mecanismos de controle e rastreamento.
Como você consegue fugir?
- O chip de rastreamento existe na minha cabeça e é por
isso que eu uso essa máscara quase sempre. Ela inibe o sinal e impede o
rastreamento.
- E o controle emocional? Já vi cyborgs fazerem
coisas horríveis. Falou tentando evitar lembranças ruins, com certeza.
- O chip de controle está vazio. Eles não podem me
controlar.
- Como você conseguiu isso?
Contei a ela a história do Doutor Isávolo e de tudo que
havia passado até aquele momento. Nunca havia falado tanto de minha vida a
ninguém depois da morte de Alícia. Rebeca me deixava tão à vontade, mesmo em
meio aquela guerra. Escutava atentamente meu relato feito em voz baixa para não
acordar as crianças ou outros visitantes inconvenientes. Às vezes, me olhava
com tanta fixidez que eu chegava a ficar sem graça, mas continuei a falar.
Falamos tanto que chegamos até a sorrir em alguns momentos. Ela me parecia tão
familiar, tão íntima. Era também muito linda, frágil e delicada. Tive vontade
de protegê-la. Estreitá-la em meus braços e evitar que qualquer mal destruísse
aquele corpo frágil.
- Sebastian, venha conhecer nosso acampamento. Você pode se
juntar a nós. Tenho certeza de que Gabriel concordará.
- Quem é Gabriel?
- É nosso líder. Um homem muito bom. Ele e Helena, sua
esposa, foram os primeiros de nosso grupo. Essas crianças são filhos deles.
- Mas porque vocês estão aqui, se arriscando?
- Em nosso grupo, há uma divisão igualitária e inclusive o
líder participa das tarefas. Esta semana é a nossa vez de buscar comida, então
vim para ajudá-los com as crianças.
- Sei.
- Venha conosco, Sebastian. Insistiu.
- Não sei se serei bem vindo, Rebeca. Sou um cyborg, lembra-se?
- Eu ficaria muito feliz se você viesse...
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